Sonhei com a parte do prólogo, quando acontece o feitiço
Já houve o encantamento. Ab initio, o espetáculo de Tchaikovsky se desdobra na história de outra donzela aspirante ao extraordinário. No jogo especular proposto por Aronofsky, a narrativa também é duplo, estrutura deformada de O Lago dos Cisnes.
Somos lançados dentro do processo alucinado de incorporação artística encenada por Nina e da imagem deformada no espelho: a protagonista não pretende se libertar da forma de cisne; ao contrário, entrega-se, cada vez mais fundo, ao sortilégio. Assumir a possessão (em outras palavras, ser possuidor da possessão) elimina a necessidade de um príncipe e seu amor exclusivo. Nina é a LEDA capaz de tomar pra si o saber e a força daquele que a violenta – nesse caso, nenhum Zeus em metamorfose, mas o desejo de atingir excelência em sua arte. “Eu só quero ser perfeita” é o fio que nos puxa ao interior do labirinto.
E lá, na espiral de espelhos, o movimento do corpo, o ritmo da música, as cores alternadas se misturam à aquisição de todas as nuanças possíveis da alteridade radical ansiada – e ansiada até rebentar todos os limites. Se Lily tem as asas de cisne negro tatuadas nas costas, se Beth vivenciou as faces obscuras do “duplo monstruoso”, Nina deixará a pele ser perfurada com a plumagem noturna e deixará as pernas se arquearem até perder a arquitetura frágil que as sustenta. Nina, Lily e Beth – três cifras de duas sílabas: o duplo que antecede a indistinção.
Não existe ninguém nessa história além de Nina. Seu corpo é o lugar de onde assistimos ao balé.
A faceta do cisne branco, identificada à mulher de 28 anos infantil, sob o domínio da ambiguíssima proteção materna, é tão teatral quanto será a do cisne negro. É a primeira máscara acoplada ao rosto, finamente transmutada em aderência.
A tese de que o bem e a pureza são maquinais, controlados e desumanos, explicitamente trabalhada num filme como O Olho do Diabo, do Bergman, ressurge nas dobras de inúmeras falas do diretor e professor de dança. “Deixe-se levar”, ele repete.
Quando o artista se entrega à pura experiência de ser, acontece o inesperado, o imprevisto, onde, segundo Eurípedes, “um deus encontra passagem”. #primeiro_recorte | violência em representações do feminino | papéis que representamos
A identificação do duplo monstruoso permite vislumbrar em que clima de alucinação e terror ocorre a experiência religiosa primordial. Quando a histeria violenta encontra-se no auge, o duplo monstruoso aparece em todos os lugares ao mesmo tempo. A violência decisiva vai se dar simultaneamente contra a aparição sumamente maléfica e sob sua égide. Uma calma profunda segue-se à violência furiosa; as alucinações dissipam-se, o repouso é imediato. Isto torna mais misteriosa ainda toda a experiência. Em um breve instante, todos os extremos se tocaram, todas as diferenças se fundiram. Uma violência e uma paz igualmente sobre-humanas pareceram coincidir. Continue lendo “o duplo monstruoso”