(…) corpo mutilado pela própria criação. que aspira ser alteridade radical enquanto experimenta o prazer dessa alteridade no próprio movimento.
no conto do hans christian andersen, sapatinhos vermelhos, há outra encenação: a dança será eterna, a não ser que os pés da menina sejam mutilados.
no filme a menina no país das maravilhas, a presença do cisne branco é determinante. rodopia no ar a aspiração destrutiva pelo ideal.
talvez exponha a relação entre esses cacos de ideia AQUI. por enquanto, digo que há um filme de horror trash baseado no conto do andersen: voyerismo, identificação, jogo dos duplos.
[nota] algumas sociedades divinizam o acaso. #mastigue a cifra
pelo jogo da fascinação, o voyeur é arrancado de si mesmo, destituído do próprio olhar, invadido pelo olhar da figura que o encara (…) a possessão: usar uma mascara e deixar de ser o que se é — encarnar, durante a mascarada, o poder do além que se apossou de nós e do qual imitamos ao mesmo tempo a face, o gesto e a voz. o desdobramento do rosto em máscara, a superposição da segunda ao primeiro, que o torna irreconhecível, pressupõem uma alienação em relação a si mesmo, um controle por parte do deus que nos passa o freio e as rédeas, que nos cavalga e arrasta em seu galope; estabelece-se portanto, entre o homem e o deus, uma contiguidade, uma troca de estatuto que pode chegar à confusão, à identificação, mas ainda nessa proximidade instaura-se o apartar-se de si mesmo.
a projeção numa alteridade radical, inscrevendo-se na intimidade e no contato a maior das distâncias e o estranhamento mais completo. a face de gorgó é uma máscara; mas em vez de ser usada para que seu portador imite o deus, esta figura produz o efeito de máscara simplesmente olhando-nos nos olhos. como se esta máscara só tivesse deixado nosso rosto, só se tivesse separado de nós para se fixar à nossa frente, como nossa sombra ou nosso reflexo, sem que nos possamos livrar dela. é nosso olhar que se encontra preso à máscara.
a face de gorgó é o outro, nosso duplo, o estranho, o estrangeiro em reciprocidade com nosso rosto como uma imagem no espelho (esse espelho em que os gregos só podiam ver-se de frente e sob a forma de uma simples cabeça), mas imagem que seria ao mesmo tempo menos e mais do que nós mesmos, simples reflexo e realidade do além, uma imagem que se apoderaria de nós, pois em vez de nos devolver apenas a aparência de nosso próprio rosto, de refratar nosso olhar, representaria, em sua careta, o horror terrificante de uma alteridade radical, com a qual por nossa vez nos identificaremos transformando-nos em pedra. olhar nos olhos de gorgó e ver-se face a face com o além em sua dimensão de terror (…)quando encaramos gorgó, é ela que faz de nós o espelho no qual, transformando-nos em pedra, contempla sua face terrível e se reconhece no duplo, no fantasma que nos tornamos ao enfrentar o seu olho. ou ainda, para exprimir em outros termos esta reciprocidade, esta simetria tão estranhamente desigual entre o homem e o deus, o que a máscara de gorgó nos permite ver, quando exerce sobre nós o seu fascínio, somos nós mesmos no além, esta cabeça vestida de noite, esta face mascarada de invisível que, no olho de gorgó, revela-se a verdade de nosso próprio rosto. esta careta é também a que aflora em nosso rosto para nele impor sua máscara quando, a alma em delírio, dançamos ao som da flauta a bacanal de hades.